quarta-feira, 30 de abril de 2008

G1 exclusivo: Alan Moore fala sobre sexo, mentiras e Harry Potter

Em 'Lost girls', quadrinista narra aventuras eróticas de Alice, Wendy e Dorothy.
Irritado com Hollywood, ele confessa que nunca viu nenhum filme baseado em sua obra. (Diego Assis -Do G1, em São Paulo)
Divulgação/Top Shelf
O escritor e roteirista de HQ Alan Moore (Foto: Divulgação/Top Shelf)

Para os seus muitos fãs espalhados pelo mundo, Alan Moore é Deus. Para alguns de seus desafetos, como o Warner Bros., estúdio que transportou obras suas como “Constantine”, “V de vingança” e em breve “Watchmen” às telas dos cinemas, Alan Moore pode ser o Diabo na Terra.
Roteirista de histórias em quadrinhos, romancista, ex-colaborador do semanário britânico “NME”, músico e - mais recentemente - estudante aplicado de magia, este senhor inglês de 53 anos é geralmente creditado como um dos principais responsáveis por levar as HQs à fase adulta.

Conheça as principais obras de Alan Moore
Nove vezes vencedor do Prêmio Eisner, o mais importante do gênero nos Estados Unidos, Alan Moore envolveu-se em disputas legais com as duas maiores editoras de HQ dos Estados Unidos, Marvel e DC, e desde então passou a produzir seus trabalhos de forma esporádica e independente.

E foi graças a essa independência que ele conseguiu botar nas prateleiras recentemente sua obra mais polêmica e ambiciosa, “Lost girls”, um mergulho nas aventuras eróticas de três das mais populares personagens da literatura infantil: Alice, de “Alice no país das maravilhas”, Wendy, de “Peter Pan”, e Dorothy, de “O mágico de Oz”. O primeiro dos três volumes da obra, caprichosamente ilustrada por sua atual esposa, Melinda Gebbie, já foi lançando no Brasil pela editora Devir.

Por telefone direto de Northampton, cidade onde nasceu, cresceu e de onde não pretende sair tão cedo, Alan Moore falou com exclusividade ao G1 sobre “Lost girls”, mangás, Hollywood, Harry Potter e até Paulo Coelho. E falou muito. Abaixo seguem os principais trechos da conversa. Se você é fã, maior de 18 anos e prefere ler a íntegra da entrevista, respire fundo, e clique aqui.


Divulgação
Capa do primeiro livro da edição brasileira de "Lost girls", da Devir (Foto: Divulgação)


G1 - Por que você escolheu Alice, Dorothy e Wendy como protagonistas de ‘Lost girls’? Acredita que já houvesse um conteúdo sexual nas entrelinhas nos livros originais dessas personagens?
Alan Moore –
Desde meados dos anos 1980 eu vinha pensando se seria possível produzir uma obra extensa sobre sexo que tivesse todas as qualidades que se pode esperar de qualquer romance ou obra de arte. Uma idéia que eu já tinha envolvia “Peter Pan”. Porque, de acordo com [o pai da psicanálise] Sigmund Freud, os sonhos de vôos são também sonhos de expressão de sexualidade. Mas foi só quando encontrei Melinda Gebbie que a idéia começou a tomar forma. Melinda disse que sempre havia gostado de ter três mulheres como protagonistas das histórias que fazia por gostar mais da dinâmica que se pode desenvolver dessa forma. Então as duas idéias se cruzaram e comecei a pensar: se Wendy, de “Peter Pan”, fosse uma das três mulheres, quais seriam as outras duas? Daí foi um passo bem curto até Dorothy, de “O mágico de Oz”, e Alice, de “Alice no país das maravilhas”. Nem tanto porque já houvesse algo de erótico nas personagens, mas pela natureza dessas três histórias, em que três jovens garotas são retiradas de suas vidinhas confortáveis e familiares e colocadas em mundos estranhos e fantásticos em que nenhuma das leis normais da realidade é a mesma, e as pessoas que encontram são bizarras ou grotescas. Pensamos que isso nos daria uma metáfora perfeita para o modo como amaioria das pessoas descobre a sua sexualidade, provavelmente quando criança - ou mesmo aos 30 anos. Entramos nesse mundo como crianças, achamos tudo estranho, populado por seres peculiares, mas, como Alice, Dorothy e Wendy, encontramos nossas respectivas terras das maravilhas.

G1 – A história e as ilustrações de “Lost girls” trazem referências explícitas a grandes tabus da sociedade ocidental, como abuso infantil, incesto e uso de drogas. E isso tudo num universo que pertence à literatura infantil. Vocês encaram esse trabalho como uma provocação política?
Moore - Honestamente, não estávamos tentando chocar ninguém. Nunca pretendemos fazer uma paródia sexual selvagem desses três livros. Primeiramente, porque temos muito respeito por esses três livros e nos certificamos de que nossas versões das personagens fossem fiéis, de certo modo, às visões dos autores originais. E são personagens poderosas. Não acho que existam circustâncias degradantes a elas no curso do livro. Mas percebemos que se iríamos falar sobre pornografia, sobre a imaginação sexual humana, então teríamos de ser honestos a respeito desse mundo. Teríamos de falar até dos cantos mais sombrios da imaginação sexual humana. E claro que há um certo pânico moral sobre isso. Não sei como é no Brasil, mas certamente nos Estados Unidos e na Inglaterra e em outros países na Europa tem uma preocupação muito grande com relação a esses assuntos e que, às vezes, se torna histeria. Ao mesmo tempo, toda a nossa cultura anda em direção de erotizar tudo, incluindo as crianças, para vender de salgadinhos a carros e bandas pop, como por exemplo as Spice Girls. Elas popularizam essa idéia de sexualização para as suas fãs, que são na maioria meninas de dez anos.

G1 – O que acha da maneira como os japoneses lidam com a sexualidade nos mangás e animês?
Moore – Não sou um grande fã do que se conhece como mangá hoje. Mas não gosto da abordagem dos japoneses para o sexo. Eles são muito reprimidos em certas coisas. Creio que ainda seja ilegal mostrar genitália ou pêlos pubianos. Com isso, o que fazem é forçar os artistas japoneses a artifícios grotescos para compensar aquilo que poderiam ser substituído com a expressão sexual. Se for para você mostrar órgãos genitais, algo que todo mundo tem, provavelmente não vai chocar tantas pessoas mostrando-os de forma realista do que as que pegarem um mangá em que o protagonista abre o seu zíper e o que sai de suas calças não é um pênis humano comum, mas uma metáfora sexual bizarra como um míssel teleguiado, uma serpente...

G1 – Soube que “Lost girls” levou 16 anos para ser concluído. É isso mesmo?
Moore -
Dezesseis ou 17. Começamos em 1989 e desde então tivemos duas ou três editoras por causa dos altos e baixos da indústria de publicação na América. Nesse meio tempo eu estava pagando Melinda para produzir as páginas porque achava importante que o projeto fosse finalizado e estávamos muito comprometidos com ele. Investimos uma parte muito grande das nossas vidas nesse projeto.

G1 – Até que você e Melinda acabaram se casando. Acha que, de certa forma, o teor altamente erotizado do trabalho acabou ajudando a relação de vocês?
Moore -
Com certeza. O livro e o relacionamento foram muito bons um para o outro. Acho que não poderíamos ter tentado fazer esse livro se não tivéssemos uma relação. Não teríamos trabalhado por 16 anos se não tivéssemos essa ligação íntima muito, muito forte. Ao mesmo tempo, acredito que o livro ajudou a relação também.

Foto: Jose Villarrubia
Jose Villarrubia
Alan Moore e sua mulher, a desenhista Melinda Gebbie (Foto: Jose Villarrubia)

Lembro que, quando começamos a fazer essa obra de pornografia, era quase um pré-requisito que fôssemos completamente honestos um com o outro sobre todos os nossos pensamentos sexuais, em um nível muito íntimo. Sei que há muita gente que se envolve em longos relacionamentos sem que nunca o parceiro o conheça tão intimamente. Mas, para nós, esse foi o ponto em que o nosso relacionamento começou, o que eu vejo como uma grande vantagem. E também podíamos ver um resultado físico da nossa relação emergindo das páginas de “Lost girls” que começavam a surgir.

G1 – Mudando de tema: diversos de seus quadrinhos foram adaptados para o cinema, incluindo “A Liga Extraordinária”, “Do inferno” e mais recentemente “V de vingança”. É sabido que não gosta de falar muito sobre isso, mas o que acha dos filmes?
Moore –
Eu nunca sequer os vi. Não assisti a nenhuma das adaptações para o cinema e não tenho intenção de fazê-lo. Simplesmente quero distância de tudo isso, porque não foram adaptações fiéis ao meu trabalho, parecem não ter nada a ver com as intenções das minhas obras. E houve alguns incidentes desagradáveis com o filme “A Liga Extraordinária” que me fizeram pensar que a melhor atitude a tomar seria recusar todo o dinheiro, entregá-lo para o desenhista e remover meu nome do filme. E isso se tornou uma constante. Só deu errado com o filme de “V de vingança”, em que, depois de eu repassar meu dinheiro para o artista, a [editora de quadrinhos] DC e a Warner Bros. decidiram que iriam usar o meu nome no filme. Um de seus produtores ridículos, Joel Silver, anunciou uma mentira irritante de que eu estaria incrivelmente empolgado com o filme e que eu estava conversando com ele e com os irmãos Wachowski. Foi o início de uma briga de quase um ano, bastante chata, em que tentava explicar, para revista por revista, que eu nunca trabalharia com a Warner de novo. Depois, no final daquele ano, eles mandaram um pedaço de papel dizendo que iriam retirar o meu nome do filme. Espero que tenham aprendido a lição e que não façam a mesma coisa com o filme de “Watchmen”.

Foto: Divulgação
Divulgação
Cena do filme "V de vingança", adaptação de graphic novel de Alan Moore (Foto: Divulgação)

G1 – Você tem idéia do quanto de dinheiro já perdeu por dispensar o pagamento pelas adaptações?
Moore -
Para o filme do “Constantine” foram US$ 70 mil, que dividi entre os artistas. No “V de vingança” sei que houve um pagamento inicial de US$ 7 mil, que mandei para [o desenhista da HQ] David Lloyd. Depois houve o pagamento final e nem perguntei quanto era. Só disse para mandar para David Lloyd. Então não faço idéia. Isso não importa. Para mim, é muito mais importante a integridade do meu trabalho. Não quero que as pessoas confundam essa bobagem de Hollywood com algo que escrevi.

G1 – O seu problema é com a adaptação da obra em si ou com Hollywood?
Moore -
Com os dois. Não estou muito convencido de que adaptações funcionem de modo algum. Sei que há exceções a essa regra. Mas Hollywood e a cultura americana em geral me parecem criativamente falidos. Não me lembro da última vez em que Hollywood tenha tido idéias novas. Fazem adaptações de qualquer quadrinho por aí, de qualquer romance, de boas séries de TV dos anos 1960 e 1970, de programas terríveis da TV dos anos 1960 e 1970, de jogos de computador e até de brinquedos de parque de diversão, como em “Piratas do Caribe”.

G1 – E sobre Harry Potter? Como mago, acredita que ele esteja representando bem a classe?
Moore -
Tentei ler um dos livros de Harry Potter logo quando saiu e ainda não havia toda essa falação. Mas não fui muito longe. Depois, quando todo mundo já estava me dizendo que eu deveria ler, tentei de novo e não avancei. Não achei muito bem escrito. As pessoas me diziam, “mas é escrito para crianças, não para você”. Quando, na verdade, eu conheço literatura infantil, conheço e adoro livros para crianças bem escritos, como os livros de Mary Poppins, que não menosprezam seu público e trazem um senso real de magia. Então, não, não gosto dos livros de Harry Potter e, como alguém para quem a magia faz parte de sua vida diária, não acho que aqueles livros façam bem à magia. O que eles realmente fazem é reforçar a velha crença de que a magia só pode ser encontrada em livros tolos para crianças, que não tem realidade ou existência no mundo real nem uma aplicação prática para a vida humana de uma pessoa normal. Também acho um pouco lamentável que ela [a escritora de “Harry Potter”, J.K. Rowling] tenha ressuscitado a escola pública britânica em boa parte da narrativa. Tenho, sim, muito respeito por seu sucesso, por sua fantástica história de vida: mãe solteira, escreve um romance e de repente se torna uma milionária. Boa sorte para ela. Eu apenas gostaria que os livros fossem melhores.

G1 – E quanto ao escritor brasileiro e mundialmente reconhecido Paulo Coelho, o que pensa de seus livros?
Moore -
Li alguns. Ele é interessante. Mas suas idéias de magia são diferentes das minhas. Lembro de dar uma entrevista a um brasileiro que disse que Paulo Coelho poderia transformar água em vinho e fazer chover com xamanismo. Não conheço tanto a obra de Paulo Coelho para saber do que o jornalista estava falando, mas sei que eu não consigo fazer nada disso. E não há muita vantagem em fazer chover na Inglaterra, temos chuva suficiente o ano todo. Também não preciso transformar água em vinho. Tem uma loja de bebidas aqui na esquina. Dá muito menos trabalho do que ter de transformar aqueles átomos de água em átomos de álcool (risos).

G1 - Você foi cotado para vir ao Brasil neste ano para a Festa Literária Internacional de Paraty. Por que não aceitou o convite?
Moore -
Eu não saio nem de Northampton, exceto muito raramente. Nem tenho mais passaporte. E tenho tanto a fazer que, se viajar, vou acabar desejando estar em casa trabalhando. Só ouvi coisas boas sobre o Brasil, mas é que simplesmente eu não viajo. Sou feliz em Northampton. Eu faço a maioria das minhas viagens dentro da minha cabeça. Posso viajar com a minha imaginação para um lugar e escrever sobre ele com os detalhes e a intensidade que fará o leitor pensar que eu morei lá por anos.

G1 – Você certamente conhece um bocado sobre a cidade de Northampton. Escreveu um livro inteiro só sobre ela, não?
Moore -
Sim, tenho uma paixão incrível por Northampton. Escrevi “Voz do fogo”, que era ambientando inteiro em Northampton ao longo de 6 mil anos de sua história. São 300 páginas, mas achei que era um livro muito cosmopolita e abrangente. Então, no novo livro que estou escrevendo, decidi focar em apenas alguns quarteirões de Northampton. “Jerusalém” fala do 1,5 Km2 em que eu cresci. Deverá ter algo como 1.500 páginas. E, provavelmente, o próximo vai ter 8 mil páginas e será só sobre a minha sala de estar (risos).

Foto: Reprodução/Gutemberg.org
Reprodução/Gutemberg.org
Afresco de Ernest Normand mostra o Rei João Sem Terra assinando a Carta Magna (Foto: Reprodução/Gutemberg.org)

G1 – E quais são os lugares que você circula em Northampton e que fazem parte desse 1,5 Km2 que estará em “Jerusalém”?
Moore – Socialmente, eu apenas ando pela cidade. Em “Jerusalém”, os lugares incluem o Castelo de Northampton, que virou uma estação de trem, mas foi o local onde viveu o Rei João, citado em Shakespeare. Foi o castelo onde Rei João se viu cercado pelos barões rebelados de Northampton e forçado a assinar a Magna Carta, primeiro documento pelos direitos humanos. Foi do mesmo castelo que saíram as Cruzadas, primeiro contato do mundo ocidental com o islã. Foi também onde um grande número de santos, incluindo São Tomás de Aquino, foram condenados. Sim, Northampton é o centro da Terra. E não sou eu quem está dizendo isso, é Deus quem diz também. A quantidade de história nessa área é praticamente inacreditável. As principais guerras travadas na Grã Bretanha, Guerra Civil, Guerra das Rosas, todas acabaram tendo suas batalhas finais por aqui. E ninguém ouviu falar desse lugar. Com tantos eventos históricos famosos, é obscuro.

G1 – Talvez seja mais conhecido como o lugar onde vive Alan Moore.
Moore - Sim, provavelmente. Me envergonho em dizer, mas considerando que o meu trabalho, no momento, parece popular. Espero que falando de Northampton eu consiga restaurar um pouco de sua glória antiga no mundo. É como uma capital alternativa da Inglaterra. Muitos dos reis e rainhas viveram aqui. Temos famílias aristocráticas, com ligações com a realeza. Em um mundo paralelo, Northampton é a capital de uma Inglaterra muito mais generosa e gentil. Na minha imaginação.